sábado, 26 de novembro de 2016

Enem 2016 e o Estado Laico

Devido a uma intensa correria neste maldito penúltimo mês do ano, que sempre parece conter um outro ano dentro de si de tanto que demora pra passar, meu blog anda mais parado do que o Paulo Victor em cobrança de falta. Mas, finalmente estou conseguindo sentar para descansar (espero...).

No início do referido maldito mês, fiz o Enem pela milésima vez! Ok, essa foi a última. Desta vez, estou confiante de finalmente ter conseguido tirar mais de setecentos na redação. No ano passado, quando acabou a prova, depois de ter visto o tema de feminismo, eu pensei "ah, ano que vem quero que caia a luta de que tenho mais conhecimento, quero que o tema seja laicidade do Estado". Não tinha muita esperança de que o tema fosse esse - embora algo me dissesse que podia ser -, então me preparei escrevendo genericamente em cima dele e pensando como trabalhar daquela forma com qualquer outro que viesse a ser. Mas, eis que chega o dia, eu abro a prova e pimba, acertei o tema. Quando abri e vi, quase levantei e dei um mortal pra trás.

Tá, eu sei que isso não me garante uma nota mil, mas fiquei feliz mais pelo Enem ter colocado todos para refletirem sobre esse tema quando se tem tão pouca luz sobre o mesmo. Em tempos em que se propaga tanta ignorância a respeito, isto quando se propaga alguma coisa, quando não se empurra para debaixo do tapete.

Em primeiro lugar, Estado laico não é uma luta só de ateus. Ah, lembrei de uma coisa, antes de prosseguir: o tema dizia "caminhos para se combater a intolerância religiosa no Brasil", e não "Estado laico". Por isso você acha que eu abordei a questão errado? É que nem ano passado, que o tema foi violência contra a mulher, "e não feminismo", por isso quem falou de feminismo "vai zerar porque fugiu ao tema"?

Mas voltando. Muita gente acha que ficar falando de Estado laico é coisa de ateu. Só que ele não é uma luta, uma militância, ateísta, e sim um dos pilares da democracia. A laicidade é pra mim, ateu, pro umbandista, pro espírita, pro judeu, e pra você, cristão.

Eu NÃO TENHO MAIS O QUE FAZER, nem nenhum argumento melhor, então vou usar como exemplo uma COISA INSIGNIFICANTE como o "Deus seja louvado" na nota do real.
A laicidade é a ausência de religião no governo, e não só o respeito. Quando você tem um crucifixo numa repartição pública, uma frase religiosa na nota do dinheiro, etc., é o Estado impondo uma religião. São violações da laicidade. Então, será que estas coisas são pequenas e por isso não devo dar atenção a elas? É como disse o grande José Sarney, "falta do que fazer", "tenho pena do homem que na face da terra não acredita em Deus" (e mais: dizer isso ainda é super legal e certíssimo!)?
E se numa repartição pública tivesse em vez de uma cruz um despacho de macumba? E se na nota do real viesse escrito "salve Oxossi", ou algo do tipo? Ou "Deus não existe"? Aí você cristão ia problematizar. Ou não? Não, "aí seria diferente"?
É por isso que a laicidade é para todos, e não uma coisa anti-cristianismo.
Por que não põe na nota uma frase que não diga respeito a religião nenhuma, como "ordem e progresso", ou simplesmente não põe frase nenhuma? Ah, não tem imposição religiosa, né?

"Vocês não têm mais o que fazer não?"
O Brasil - até mesmo historicamente, né - impõe o cristianismo. Há uma imposição esmagadora desse segmento religioso por aqui. O maior símbolo da minha cidade é uma estátua gigante de Cristo. Boa parte dos lugares - ruas, cidades, etc., - têm nome de santo. Somos um dos países que mais tem feriados, a maioria deles religiosos. Religiões afro-brasileiras são demoníacas. Se falar em não em não acreditar em Deus então... por aí vai.

Meus amigos que passaram o ano fazendo pré-vest foram pegos meio que de mãos atadas por essa redação. Muitos não sabem fazer uma argumentação mais contundente sobre esse tema por não refletirem sobre ele. Não refletem pura e simplesmente porque, sendo cristãos, fazem parte desse sistema de imposição e o alimentam e defendem, mesmo que inconscientemente. É a mesma coisa que as outras imposições sociais: o cristão acha que não existe imposição cristã, pelo mesmo motivo que o homem acha que não existe machismo, o branco acha que não existe racismo e o hétero acha que não existe homofobia.

Tenho que repetir e destacar que essa imposição religiosa é, mais especificamente, cristã. Lógico que não ia ser é umbandista.
O que me lembra de um último detalhe engraçado. Em meio aos textos motivadores da prova, tinha um gráfico que relacionava um número de denúncias por intolerância religiosa de 2011 a 2014, separado por religião. Em primeiro lugar, estavam as denúncias de religiões afro-brasileiras. Em segundo, da evangélica. A católica vinha em quarto, depois da espírita. Aí eu vi na internet gente tirando foto disso e dizendo "e vocês dizem que o cristão não sofre preconceito".
Responda as perguntas: qual é o preconceito que você cristão sofre, além de "cristofobia"? "Ah, sou cristão e sofro preconceito mesmo". Legal, bacana, mas próximas perguntas: E qual é o que sofre o ateu, além de constrangimento social? E o praticante da religião afro-brasileira, além de levar pedrada? Não é que essa estatística seja mentirosa, mas ela é no mínimo curiosa, pra não dizer irônica.

Bem, vimos hoje que o sistema de imposição cristã é real, e acrescento que você não está errado em ser cristão, assim como não estamos errados em sermos homens, brancos ou héteros. Só precisamos nos colocar mais no lugar dos outros. Como proposta de intervenção de "conscientização da população" é uma proposta meio vaga e menos contundente, a minha é que o caminho pra combater a intolerância religiosa no Brasil começa com a não imposição religiosa por parte do Estado. Respeito à laicidade, já que não tem parecido ultimamente mas ela ainda está lá na constituição, em virtude da diversidade do nosso país. Assim, a própria população ganha autonomia para possuir, praticar e lutar por seus ideais e sua visão de mundo.

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